Este deslocamento forçado ecoa tragicamente em outros cenários de extrema violência. Na África e no Oriente Médio, conflitos armados, perseguições étnicas e crises políticas continuam a gerar diásporas massivas. O que vemos em Gaza, no Sudão, na República Democrática do Congo e na Síria são processos migratórios nascidos do horror. São jornadas empreendidas,  não por escolha, mas por pura necessidade de sobrevivência. O festival nos oferece uma lente crucial para entender essas realidades distantes, rompendo a barreira da indiferença e nos conectando com a dor e a dignidade daqueles que são obrigados a recomeçar do zero, carregando apenas a memória do que foi perdido.

É impossível dissociar esses fluxos migratórios forçados de um contexto histórico de exploração e dominação. As crises que hoje expulsam populações inteiras da África, do Oriente Médio e da América Latina não são fenômenos isolados ou acidentes de percurso. Elas são, em grande medida, o resultado de um legado perverso: as potências do Norte Global, através de séculos de colonialismo e de interferência neocolonial, dilapidaram recursos, desestabilizaram governos e impediram o desenvolvimento soberano dessas nações. O que testemunhamos hoje não é uma ‘invasão’, mas um fluxo histórico de consequências. São os povos do Sul Global, em sua luta desesperada por sobrevivência, que cruzam as fronteiras em direção aos mesmos centros que há tanto tempo lucram com sua subordinação. É, em seu sentido mais cru, a colheita amarga de séculos de espoliação. E qual é o destino dessas jornadas? Frequentemente, é o muro da hostilidade.

Na Europa e nos EUA, o acolhimento dá lugar a políticas de fortaleza, a discursos de ódio e a um crescente embate social. O imigrante, que busca reconstruir sua vida, é frequentemente transformado em bode expiatório, visto como uma ameaça e não como um contribuidor para a cultura e a economia. Esta edição do festival se propõe a desconstruir esses estereótipos, apresentando narrativas que celebram a diversidade, o hibridismo cultural e a coragem do imigrante, ao mesmo tempo que não se furtam a criticar as violações de direitos humanos nas fronteiras.

Por que Cuiabá, no coração do Brasil, deve dialogar sobre isso? Porque nós, brasileiros, somos feitos de migrações: dos povos originários, dos colonizadores, dos africanos escravizados, dos italianos, japoneses, sírio-libaneses e dos próprios nordestinos que povoaram nosso Centro-Oeste. E hoje, testemunhamos os “refugiados climáticos” internos das queimadas e do assoreamento dos rios no Pantanal e na Amazônia. Nossa realidade local é um microcosmo do fenômeno global.

O Festival de Cinema de Cuiabá, ao abraçar este tema, cumpre um papel essencial: o de humanizar. Através da força das imagens e das histórias, ele convida o público a transcender estatísticas e manchetes sensacionalistas. Ele nos permite caminhar, por algumas horas, nos sapatos de quem foi forçado a deixar tudo para trás. É um convite à empatia, à reflexão crítica e à solidariedade.

Que nesta 23ª edição, as telas sejam um território sem fronteiras, onde possamos compreender que a migração não é um problema a ser resolvido, mas uma condição humana a ser acolhida. E que, ao final, entendamos que o direito de permanecer e o direito de partir são, acima de tudo, o direito a existir com dignidade.

Seja bem-vindo a este debate necessário.

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