apresentação

Desde sua primeira edição em 1993, quando ainda se chamava Mostra de Cinema e Vídeo de Cuiabá, o festival surgiu como um ato de resistência cultural em um estado onde as salas de exibição se limitavam a um único cinema comercial. Ousando trazer o cinema nacional para as plateias mato-grossenses, o evento se revelou não apenas um espaço de exibição, mas um projeto pedagógico e político que transformou a cena cultural local.

Ao longo desses 30 anos, o festival escreveu seu nome na história do audiovisual brasileiro ao ser palco de primeiras consagrações de grandes nomes como Dira Paes, que recebeu aqui seu primeiro prêmio de Melhor Atriz por “Corisco & Dadá” (1996), Fernando Meirelles, premiado por “Domésticas” (2001) antes de ganhar o mundo com “Cidade de Deus”, e Hilton Lacerda, diretor  e roteirista de “Tatuagem” (2014) e ainda como roteirista de obras marcantes como “Amarelo Manga” e “Baile Perfumado”. O festival também homenageará nesta edição o cineasta Silvino Santos (1886-1970), português que imigrou para o Brasil no início do século XX e se tornou um dos pioneiros do cinema e da fotografia na Amazônia, deixando como legado poderosas imagens sobre a luta dos povos da floresta e a vida dura dos imigrantes nordestinos na produção do látex.

Mais do que premiar, o evento formou gerações de profissionais que hoje atuam no audiovisual mato-grossense, muitos dos quais tiveram seu primeiro contato com o cinema através das oficinas do festival. Ao longo de sua trajetória, o festival trouxe filmes que jamais chegariam ao circuito comercial e promoveu diálogos urgentes sobre identidades indígenas e quilombolas, direitos LGBTQIA+ (em debates pioneiros já nos anos 1990) e justiça socioambiental na Amazônia. Apesar de ter enfrentado crises que espelham os desafios da cultura no Brasil – como o desmonte de políticas públicas que o deixou seis anos sem ocorrer após 19 edições consecutivas -, o festival mostrou sua resiliência ao retornar em 2021 via Lei Aldir Blanc, em formato virtual, mantendo seu DNA formativo.

Nesta edição especial, que coincide com os 61 anos do golpe militar de 1964, o tema “Decolonizando a Amazônia” conduz a uma reflexão contemporânea sobre o processo de construção deste importante território e bioma. A proposta é apresentar imagens simbólicas da produção audiovisual contemporânea que incitem um olhar diferenciado do pensamento europeu/colonialista, valorizando outras narrativas e sujeitos envolvidos no protagonismo em defesa dos povos originários, trabalhadores e migrantes que tornam esse ambiente rico e diverso. A programação irá refletir sobre os impactos dos projetos de desenvolvimento implementados durante o regime militar e suas possíveis relações com as profundas alterações climáticas em curso na região e no planeta.

A decolonização não pode ser pensada de forma isolada, pois é parte de um movimento maior que abrange toda a América Latina e o Sul Global. A colonização não foi apenas um processo de dominação territorial, mas também uma violência epistêmica que impôs uma visão de mundo eurocêntrica e apagou saberes, culturas e modos de vida. Decolonizar a Amazônia significa, portanto, reconhecer e valorizar os conhecimentos dos povos originários, suas formas de organização social e sua relação com a natureza, questionando as estruturas de poder que perpetuam a desigualdade e a exploração. O Sul Global, que carrega as marcas profundas da colonização, é também um espaço de resistência e reinvenção, onde a decolonização se apresenta como um ato de reexistência – a recuperação de narrativas apagadas, a reconstrução de identidades fragmentadas e a criação de novas possibilidades de futuro.

Hoje renascido, o Festival de Cinema de Cuiabá prova que sua missão permanece mais vital do que nunca: universalizar o acesso à cultura (com sessões em presídios e hospitais), valorizar a memória (com mostras de cinema mato-grossense) e preparar o amanhã (através das oficinas). Mais do que um espaço para exibir filmes, o festival se consolida como um ambiente para questionar, debater e agir, lembrando que a decolonização, embora não seja um processo fácil ou rápido, é absolutamente necessária para a construção de um futuro mais justo e plural.

“Não somos um evento, somos um movimento. E movimentos não morrem — se reinventam.“

Luiz Borges , cineasta e organizador
Luiz Borges, cineasta e organizador do Festival de Cinema de Cuiabá há mais de 20 anos. Apaixonado pelo cinema e pela diversidade cultural, Luiz dedica-se a promover a produção audiovisual local e internacional, criando uma plataforma inclusiva para cineastas e amantes da sétima arte. Sua visão e compromisso são fundamentais para o sucesso e prestígio do festival.
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